Ijiraq

Introdução:

Após um longo dia de entrevistas e sessões de autógrafos, cheguei em casa mais cansada do que deveria. O tipo de cansaço que não se resolve dormindo. Meus dias vinham se repetindo desde que aquele livro fez sucesso; tudo acontecia em ciclos bem definidos, previsíveis demais para alguém que vive de imaginar o imprevisível. Ser conhecida como escritora soava irônico: escrevo sobre medo, mas já não sentia nada além de um vazio persistente, difícil de nomear.

As histórias não vinham mais com naturalidade. As ideias surgiam rasas, descartáveis, e morriam antes de se aprofundarem o suficiente para justificar o esforço. Pensei que talvez o problema fosse o excesso de gente, de opinião, de expectativa. Deitada na cama, encarando o teto de forma imóvel, senti o vazio se tornar pesado. Percebi que nada do que estava ali naquela mesa iria me salvar — nem os livros de inspiração, nem os textos motivacionais presos ao quadro de cortiça acima da escrivaninha. Nada. “Talvez um pouco de ar me faça bem”, pensei. Decidi ir até a varanda. Ao acender um cigarro, meu celular vibrou: era o estúdio em que eu trabalhava, avisando sobre a necessidade de um novo livro e sobre o prazo que se aproximava.

“Gananciosos de merda” era como o contato estava salvo.

Escrever sempre foi uma paixão enorme, mas havia se tornado um trabalho incessante. Um trabalho que me rendeu uma quantia relativamente confortável de dinheiro, ao custo da minha criatividade, que eu sentia se esvair pouco a pouco. Nunca foi minha intenção transformar paixão em rotina — ainda mais uma rotina cheia de prazos e pressões. Não sentia conforto em escrever absolutamente nada. E mesmo quando tentava, nada conseguia sair da minha mente. Eu estava travada.

Sentada em frente ao notebook, abri o documento de rascunho das últimas tentativas fracassadas de contos que havia escrito. Digitei algumas palavras, apaguei no mesmo instante. Algo me incomodava. Nada parecia eficaz, nada parecia realmente assustador. Minha especialidade era o medo, e tudo o que eu sentia era o peso do silêncio da casa.

...silêncio demais.

Não o silêncio confortável, mas aquele que pressiona os ouvidos. Eu precisava sair dali se quisesse escrever qualquer coisa.

Lembrei que meus cigarros estavam acabando. Decidi dar uma volta. Peguei as chaves do carro em cima da escrivaninha e fui até a garagem. Ao sair de casa, vi relâmpagos cortarem o céu noturno, anunciando o que parecia ser uma grande tempestade. Melhor me apressar. O posto de conveniência mais próximo ficava em uma cidade vizinha, acessível apenas pela rodovia que cruzava a serra. Aumentei a velocidade tentando evitar a chuva, mas não adiantou. Assim que entrei na serra, ela caiu violenta.

A pista estava deserta naquela noite. A chuva era intensa, e o cheiro de terra molhada se espalhava pelo ar. Liguei o rádio, procurando algo que abafasse o ruído estático das vozes na minha cabeça. Entre interferências e chiados, encontrei um único canal com o áudio limpo: uma cantora sertaneja falava sobre relacionamentos frustrados, embalados por melodias repetitivas. Deixei o volume o mais baixo possível.

Com a chuva ficando cada vez mais forte, o som das gotas batendo no para-brisa e a música baixa no rádio começaram a surtir efeito. Minha mente vagava por possíveis ideias para novos livros. Comecei a cantarolar enquanto dirigia. Sempre percorri aquela rodovia, mas naquela noite, em específico, ela estava vazia. Onde costumavam passar caminhões e outros carros, agora havia apenas o escuro, recortado pela luz dos faróis e pelos clarões ocasionais dos relâmpagos.

Ao virar uma curva, senti meus dentes rangerem. Era tensão. Já ouvira relatos de que aquele trecho era perigoso à noite, palco de inúmeros acidentes, ainda mais sob uma tempestade como aquela. Fiquei ansiosa e foquei na estrada. Na quinta curva, uma pessoa surgiu de trás de uma placa de velocidade, caminhando lentamente em direção à rodovia. Mirei o carro para o desvio, mas ela parecia não perceber minha aproximação. Não conseguia ver seu rosto; o corpo estava de lado. Algo estava errado. A pessoa estava nua. Era uma mulher. Ela atravessava a pista quando, de repente, parou e se virou em direção ao carro. Apertei o freio com toda a força que consegui e, por choque, não consegui tirar o pé dele.

Ao olhar com mais calma, enquanto as palhetas do para-brisa lutavam contra a cortina de água, senti algo dentro de mim se deslocar. Aquela mulher não estava apenas parada ali. Ela me observava com uma atenção vazia, como quem reconhece um hábito antigo. Sob a chuva, sua pele clara parecia ainda mais pálida, quase de porcelana, contrastando violentamente com os cachos negros que lhe emolduravam o rosto em espirais pesadas, colados à pele molhada.

Os traços eram delicados demais para serem confundidos: o nariz pequeno, o pescoço esguio, a boca bem desenhada. Lábios escuros, de um tom profundo que eu conhecia intimamente, rígidos em uma seriedade silenciosa. O brilho metálico no rosto — a argola no septo, o ponto de luz no lábio inferior — refletia de forma irregular os faróis, como se piscassem fora de ritmo. Tudo era meu. Cada detalhe era meu. Tudo estava errado.

Os olhos, grandes e amendoados, não piscavam. Não refletiam a luz. Eram fundos demais, preenchidos por uma tonalidade carmesim espessa, como algo antigo e coagulado, substituindo qualquer traço de humanidade. Não havia curiosidade, nem raiva, nem surpresa. Apenas um desinteresse absoluto, como se eu fosse um detalhe entediante da paisagem.

Meu estômago afundou. Não pensei em gritar, não pensei em correr. Meu corpo apenas travou, obediente a um medo primitivo demais para virar pensamento.

Ela deu um passo à frente.

O rádio chiou. A música se distorceu por um segundo, como se alguém tivesse arrastado a mão sobre o disco. As luzes do painel piscaram. O carro perdeu aderência, o mundo inclinou de um jeito impossível. A imagem dela se fragmentou entre água e luz, mas o olhar permaneceu fixo em mim até o último instante, indiferente, quase entediado.

Entrei em pânico, comecei a acelerar, desviei da figura pálida e nua. Conforme corria e descia as curvas, acabei perdendo o controle. Houve um som seco, o estalo de algo partindo, e então o impacto. A sensação foi de ser arrancada de dentro de mim mesma. Minha cabeça bateu, o ar fugiu dos pulmões, e tudo ficou pesado demais para sustentar.

Depois disso, apenas o escuro.

Senti meu corpo ser arrastado pelos pés por alguém enquanto minha cabeça ardia, provavelmente pela pancada do acidente. Minha boca estava seca, como se eu não bebesse água há dias. Mantive os olhos fechados. Um cheiro doce se espalhou no ar molhado enquanto eu sentia a chuva cair em meu rosto, algo que me lembrava dos doces da infância. Lembrei de brincar com meus primos. Lembrei dos meus avós. Depois disso, o sono veio outra vez.

Quando despertei de vez, estava deitada em uma cama de rosas. O lugar era estranho, uma clareira no meio da floresta. Estava ensolarado... Por quanto tempo eu estive dormindo? Não havia sinal do meu celular. Minha boca não estava mais seca. Minhas roupas estavam limpas, como se eu não tivesse sido arrastada pela chuva. Olhei ao redor e vi uma entrada para a floresta escura. Um caminho me aguardava.

Ficar ali não parecia seguro.

Ainda assim, caminhar em direção à floresta também não parecia.

O que eu faço?

Grite por ajuda

Entrar na floresta

[Sair do conto]

Feito com ódio por Angeldestruction (Para Ana Laura e sua mente profunda).